Atualmente, o programa United to End Violence Against Woman, das Nações Unidas, traz um perfil alarmante da violência imposta às mulheres. Estima-se que 7 em cada 10 mulheres tenham sofrido algum tipo de violência física e ou sexual, em algum momento da vida; 603 milhões de mulheres vivem em países onde a violência doméstica não é considerada crime; 1 em cada 4 mulheres já sofreram violência física ou sexual na gestação.
Dados do Banco Mundial apontam que mulheres entre 15 e 44 anos de idade sofrem maior risco de serem estupradas ou violentadas no âmbito doméstico do que desenvolveram câncer, contrair malária, serem vítimas de acidentes de carro ou de guerra (UN WOMEN, 2019). Com relação ao feminicídio, a ONU calcula que cada hora, 6 mulheres são vítimas de feminicídio. No Brasil, a violência de gênero atinge majoritariamente mulheres negras e pobres, que são 54% das vítimas (UN WOMEN, 2019).
O direito brasileiro, até recentemente, impunha limitações ao exercício de direitos das mulheres, mas com o advento da constituição de 1988 e algumas modificações sofridas no sistema jurídico, podemos afirmar a igualdade de direitos como um ganho para as brasileiras, em especial a algumas questões. Questões relativas ao voto, o poder do marido anular o casamento caso a esposa não casasse virgem, a expressão mulher honesta que validava o crime de estupro, a redução da capacidade civil ao casar-se e a necessidade de autorização para trabalhar são exemplos das violências sofridas pelas mulheres instituídas pelo próprio Estado, que estão superadas pela letra da lei.
No Brasil, a partir da década de 80, a publicização das violências sofridas pelas mulheres no espaço privado ganhou relevância, apesar de não ser possível precisar desde quando agressões contra mulheres vêm sendo denunciadas, já que desde o século XVIII, muitas mulheres recorriam à Igreja, solicitando a separação ou intervenção nas relações conjugais em caso de agressões físicas, conforme Izumino (2004).
Na realidade não importa sobre qual período da história da sociedade brasileira nos debruçamos, os abusos físicos contra mulheres estão sempre presentes, sendo que seu transbordamento para o espaço público parece sempre ter ocorrido em momentos em que os excessos cometidos pelos agressores forçaram a sociedade a denunciá-los e pedir sua punição (IZUMINO 2004, p. 14).
No florescimento dos movimentos sociais feministas, tanto no que diz respeito à ampliação quanto à criação de novos direitos, podemos dizer que as saídas para o ambiente público das violências sofridas datam mais ou menos da reabertura democrática. A partir daí se desencadeou um processo de negociação entre o movimento de mulheres e o Estado, que buscou políticas públicas para dar respostas institucionais ao fenômeno da violência doméstica contra as mulheres.
Neste momento, passa a existir um processo de definição de novos problemas, conceitos e preocupações, questões que ultrapassam o ambiente privado, questões que estão circunscritas às relações de parentesco ou não (ALIMENA, 2010).
A partir de agora passa a ser possível visualizar o deslocamento da gestão das violências ocorridas no espaço tradicionalmente privado para o espaço público (SOARES, 1999). Nesse sentido, a violência doméstica não estaria sendo simplesmente revelada, denunciada e identificada para a surpresa da população sem acesso, até então, a realidade longamente ocultada.
É, da mesma forma, o próprio movimento – que, em um contexto de produção de novos saberes, revela e denúncia a violência – que lhe confere existência, desenha seus contornos e determina sua magnitude. Quero dizer, com isso, que a violência não foi (ou não está sendo) apenas detectada e desnudada pelo movimento feminista, dos (as) ativistas e profissionais da área. Ela foi, também, construída por ele, à medida que ia sendo revelada (SOARES 1999, p. 30).
Em um movimento dialético que desvela a consciência do fato quando através de pactos internacionais e da linguagem colonizadora vai determinado o que é ou não violência à medida que ela aparece em um tempo/espaço. Essa mudança na compreensão do fenômeno da violência traz à tona condutas que anteriormente eram tratadas como comuns ou até mesmo adequadas para o âmbito de práticas criminosas.
Por exemplo, o que antes podia ser visto como um direito do marido e obrigação da esposa para a manutenção do matrimônio – a prática de relações sexuais contra a vontade da esposa – passa a ter conotação criminal. Em Outsiders, Becker (2008) propõe um exercício de relativização das regras sociais que definem situações e comportamentos como “certos” ou “errados”.
Segundo o autor, regras, desvios e rótulos são sempre construídos em processos políticos, nos quais alguns grupos conseguem impor seus pontos de vista como mais legítimos que outros, como se deu no caso da violência doméstica. O desvio não é inerente aos atos ou aos indivíduos que os praticam; ele é definido ao longo de processos de julgamento que envolvem disputas em torno de objetivos de grupos específicos. “Desvio não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na interação entre a pessoa que comete um ato e aquelas que reagem a ele” (BECKER, 2008, p. 27).
Os estudos de Simião (2005) sobre o Timor Leste nos oferecem clareza para o entendimento desse processo de “invenção da violência doméstica”, esse processo descrito por Simião está bastante ligado ao conceito de práxis como dito por Heleieth Saffioti (2204). Tradicionalmente os timorenses concebiam várias situações em que bater na mulher e nos filhos, ou eventualmente apanhar da mulher nas mesmas circunstâncias, tinha um aspecto pedagógico.
Bater para corrigir problemas de comportamento seria uma atitude legítima entre marido e mulher ou entre pais e filhos, desde que fosse feito com moderação. Porém, a atuação de ONGs e organismos internacionais no combate a essas práticas, sem nenhum esforço de compreensão de seu sentido local, ainda segundo Simião, têm promovido mudanças nesse quadro.
O Estado instituiu programas de combate à violência doméstica sob a influência do discurso universalista em defesa dos direitos humanos e da igualdade de gênero, sem as mediações necessárias para ajustá-lo ao contexto local. Apesar de essa política intervencionista ter tido algum êxito na proteção das mulheres, tem também criado novos problemas, confusões e ambiguidades.
Com a criminalização da agressão física à mulher em sentido amplo, foram inviabilizados os procedimentos tradicionalmente acionados para o equacionamento desse tipo de conflito. Se atentarmos para o ponto de vista dos atores envolvidos neste contexto, verificamos que a agressão física do passado, legitimada socialmente por meio de seu sentido pedagógico, passa a ser caracterizada como um ato de violência, recriminado socialmente.
Enquanto o “bater” tinha uma justificativa moral e o sofrimento era físico, a prática não só era aceita como também defendida por homens e mulheres, que se limitavam a criticar somente os excessos. Essas mudanças de atitude na compreensão e na prática de condutas não representam, entretanto, que aquilo que está definido como violência doméstica hoje não fosse considerado reprovável em outras épocas ou que esses atos não fossem tratados como violentos porque restritos à esfera de controle informal ou familiar.
O que podemos considerar é que eles ocupavam um outro lugar na sociedade. Essa violência, agora problematizada, passa a se destacar entre os temas sociais de maior relevância e se amplia de tal forma que incorpora (na prática ou no debate que suscita) atitudes até então aceitas ou toleradas, ganhando com isso, novos contornos e diferentes sentidos aos olhos dos especialistas e da comunidade. (SOIHET 1989, p. 303).
Mas não bastam um novo conjunto de regras para mudanças de comportamento, faz -se necessário também novas agências, que institucionalizam o empreendimento do desvio e, finalmente, possam agir por meio de uma força policial.